19 setembro, 2018

Viana não dorme


Viana não dorme. Diz-se, por aqui, que ninguém tem tempo para isso. A vida é rápida demais para se perder tempo com sono. Tantas milhas por percorrer, tantas lutas por lutar, tanto sofrimento por sofrer, tantas lágrimas por derramar. Dormir? Quem tem tempo?
Eu era o único que dormia, sempre que  vida me pesasse demais e os fardos se tornassem insuportáveis. Tinha fama de preguiçoso, o que veio desgraçar a família. Porque não lutava, não sofria, não chorava... quer dizer, não chorava com os olhos de se ver, apenas com os da alma. 
Chorava por dentro, um choro assim esperançoso que me dava a certeza de novos sorrisos. Estes eu não interiorizava, sorria com os lábios de comer e de desejar com estes mesmo que a terra um dia há de beijar. Quando dormia, eu tinha visões da felicidade. Uma Viana diferente que tinha espaço para tudo e todos, que lutava para vencer e não para sofrer. Ao dormir eu via que eu e todos os meus vizinhos também tínhamos um lugar no mundo, a vida continuava depois do nosso quintal e o dia não terminava quando o sol se deitava. Quando eu dormia, eu ouvia a voz de Viana e não era só eu... quando ela falava todo mundo parava para escutar, sentados numa roda assim como fazemos quando falta energia e a vizinha Eva nos chama para ouvir as histórias do tempo de antes do colono. Ela falava de reis, rainhas e outras coisas tão maravilhosas que pareciam inventadas. Era isso que eu via, coisas que pareciam inventadas. Lembro que um dia contei à mãe sobre estas visões.
''Já te falei para parar de dormir. Você num escuta né? Depois ficas a ter esses sonhos de maluco.''
Repreendia-me, enquanto preparava a rodilha. Eu única coisa que escutei foi esta palavra que tem sons de passarinho ''Sonho'' será que se escreve com com de sapato ou de cão? 
''Você é melhor ficar só calado. Os bongôs então estão a levar.''
Ela dizia e, finalmente, colocava a rodilha na cabeça e eu ajudava-a a colocar a bacia por cima. Era fruta que ela vendia, mas em casa não dava a ninguém. 
Aqui na minha zona, é como se houvesse todos os dias um festival de fingimentos, onde todos atiram as suas frustrações para o alto, acendem velas para aquecer a fé arrefecida e entoam melodias de tristeza, mágoas e descaso. Dançam também, uma dança para anestesiar as dores de um povo que o mundo esqueceu, um comunidade de órfãos de pais vivos e pobres de tesouros escondidos.  Durante o festival, a vizinha Eva era a única que falava.
''Como pode existir tanta morte num lugar tão vivo?'' Perguntava para si mesma, e para além de mim mais ninguém a escutava. 
Ela tinha razão. Tudo aí era passamento, só o físico é que vivia. Foi então que me lembrei da minha visão, aquela coisa maravilhosa que afinal se chama sonho. 
E se eu partilhar com os meus vizinhos? Se eu lhes contar que se dormirmos iremos ver uma Viana diferente? Que teremos luzes para criar um novo futuro?
Olhei de lado e a mãe já tinha ido zungar a fruta, os bongôs não tinham chegado ainda. 
Aproveitei para entoar o hino que, embora fosse o fruto proibido, iria alimentar o meu povo perdido. 
- Olha o sonho, olha o sonho! Arreiou, arreiou no sonho. Dorme um leva dois. 
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