Viana não
dorme. Diz-se, por aqui, que ninguém tem tempo para isso. A vida é rápida
demais para se perder tempo com sono. Tantas milhas por percorrer, tantas lutas
por lutar, tanto sofrimento por sofrer, tantas lágrimas por derramar. Dormir?
Quem tem tempo?
Eu era o
único que dormia, sempre que vida me pesasse demais e os fardos se
tornassem insuportáveis. Tinha fama de preguiçoso, o que veio desgraçar a
família. Porque não lutava, não sofria, não chorava... quer dizer, não chorava
com os olhos de se ver, apenas com os da alma.
Chorava
por dentro, um choro assim esperançoso que me dava a certeza de novos sorrisos.
Estes eu não interiorizava, sorria com os lábios de comer e de desejar com
estes mesmo que a terra um dia há de beijar. Quando dormia, eu tinha visões da
felicidade. Uma Viana diferente que tinha espaço para tudo e todos, que lutava
para vencer e não para sofrer. Ao dormir eu via que eu e todos os meus vizinhos
também tínhamos um lugar no mundo, a vida continuava depois do nosso quintal e
o dia não terminava quando o sol se deitava. Quando eu dormia, eu ouvia a voz
de Viana e não era só eu... quando ela falava todo mundo parava para escutar,
sentados numa roda assim como fazemos quando falta energia e a vizinha Eva nos
chama para ouvir as histórias do tempo de antes do colono. Ela falava de reis,
rainhas e outras coisas tão maravilhosas que pareciam inventadas. Era isso que
eu via, coisas que pareciam inventadas. Lembro que um dia contei à mãe sobre
estas visões.
''Já te
falei para parar de dormir. Você num escuta né? Depois ficas a ter esses sonhos
de maluco.''
Repreendia-me,
enquanto preparava a rodilha. Eu única coisa que escutei foi esta palavra que
tem sons de passarinho ''Sonho'' será que se escreve com com cê de sapato ou cê
de cão?
''Você é melhor
ficar só calado. Os bongôs então estão a levar.''
Ela dizia
e, finalmente, colocava a rodilha na cabeça e eu ajudava-a a colocar a bacia
por cima. Era fruta que ela vendia, mas em casa não dava a ninguém.
Aqui na
minha zona, é como se houvesse todos os dias um festival de fingimentos,
onde todos atiram as suas frustrações para o alto, acendem velas para aquecer a
fé arrefecida e entoam melodias de tristeza, mágoas e descaso. Dançam
também, uma dança para anestesiar as dores de um povo que o mundo esqueceu, um comunidade de órfãos de pais vivos e pobres de tesouros
escondidos. Durante o festival, a vizinha Eva era a única que falava.
''Como
pode existir tanta morte num lugar tão vivo?'' Perguntava para si mesma, e para além de mim
mais ninguém a escutava.
Ela tinha
razão. Tudo aí era passamento, só o físico é que vivia. Foi então que me
lembrei da minha visão, aquela coisa maravilhosa que afinal se chama
sonho.
E se eu
partilhar com os meus vizinhos? Se eu lhes contar que se dormirmos iremos ver
uma Viana diferente? Que teremos luzes para criar um novo futuro?
Olhei de
lado e a mãe já tinha ido zungar a fruta, os bongôs não tinham chegado
ainda.
Aproveitei
para entoar o hino que, embora fosse o fruto proibido, iria alimentar o meu
povo perdido.
- Olha o
sonho, olha o sonho! Arreiou, arreiou no sonho. Dorme um leva dois.
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